terça-feira, fevereiro 26, 2008

Ensinar / Educar

"Entre os conceitos de ensino e educação existem diferenças consideráveis. O ensino dirige-se mais, segundo pensamos, à aquisição de competências intelectuais variadas, à apropriação de noções susceptíveis de fazerem a ponte entre o teórico e o prático, ao manejo de conteúdos capazes de tornar os destinatários mais peritos em certas áreas do conhecimento. Por isso se diz que este ou aquele “ensinam” matemática ou biologia, história ou inglês. Seria inapropriado afirmar que eles “educavam” essas matérias. A educação contempla uma vertente primordialmente referida à maturação da personalidade e não tanto à perícia do intelecto. Assim sendo, a educação reporta-se ao plano da assimilação de valores, da interiorização de padrões aceitáveis (ou mesmo requintados) de sociabilidade, da adequação à vida de válidas formas de conduta. Os órgãos difusores do ensino são as escolas (nos seus diversos graus), os institutos de investigação, nas suas diversas áreas de especialização, ou até os grupos informais que partilham informação. Por seu turno, os núcleos educativos por excelência são as igrejas, os círculos extra-escolares de reflexão e, fundamentalmente, as famílias.
Antes de se fazerem sentir em Portugal todos os efeitos da economia individualista, de cepa liberal e cariz industrialista, o consenso social recomendava que a escola ensinasse, dando instrução, e que as famílias educassem, formando as almas e as personalidades dos seus elementos, sobretudo dos mais jovens. Porém, desfeita a família tradicional, através do envolvimento das mulheres na luta pela vida e da expulsão dos anciãos do seu seio (remetidos, como o foram para asilos, lares ou hospícios), também se desfez o aludido consenso. As famílias passaram a exigir que a escola, através dos professores, cumprisse uma dupla missão: a do ensino e a da educação. Ou seja: os docentes teriam de saber transmitir o corpo de conhecimentos integradores das suas disciplinas e, cumulativamente, deveriam arvorar-se em “tutores do comportamento” dos seus discípulos. E todas as vezes que os professores lamentavam para as famílias, com amargura, as faltas de asseio, o uso de palavrões na sala de aula, as ameaças sobre outros alunos ou sobre eles próprios, os roubos, o uso de drogas leves e pesadas, as vandalizações mais inconcebíveis, as mais inomináveis brutalidades, as famílias, muito empertigadas, passaram a responder, do fundo da sua má-consciência: “ mas por que raio é que os professores não os ensinam?” Evitaram a palavra correcta, “educar”, ladeando a questão nuclear. E por que procederam (e procedem) assim? Pela elementar razão de que, posta a pertinente interrogação, se tornaria inevitável uma conclusão que as amarraria, a elas, a essas famílias e não os professores, ao pelourinho da incúria, da demissão, do absentismo ético-social e da mais lastimável incivilidade.
Os professores, sobretudo os do ensino secundário*, são hoje a corporação profissional mais desgraçada deste desgraçado Portugal. Pedem-lhe o que eles não podem dar (uma espécie de tutela paterna diferida!), nem são funcionalmente obrigados a dar. As frustrações das famílias portuguesas – tais como a escassez de dinheiro, o acanhamento das casas, o anonimato das vidas, a ausência de horizontes de futuro, as misérias morais da Grei, a derrota do clube de futebol, o furo do pneu, etc, etc – são para eles transferidas com a implacabilidade inerente à descoberta de um bode-expiatório. Não se pára um só momento para pensar que um país sem professores motivados é um agregado desnorteado, em vias de inelutável barbarização. O drama poderia ser um pouco mais atenuado através do poder de direcção de uma tutela governamental esclarecida e atenta. Qual quê! A digníssima ministra Maria de Lurdes Rodrigues gozará, nestes próximos cinquenta anos, da duvidosa auréola de ter contribuído para a perseguição mais inconcebível, para a montaria mais cruel, para a exautoração mais canhestra que algum governo ou poder moveu aos professores portugueses da sua tutela, desde a implantação do liberalismo em Portugal.
É este o pano de fundo sobre o qual se desenha a actual luta dos professores portugueses. Por enquanto, apenas dos que labutam no ensino secundário*. Amanhã, caso continuem os despautérios, de todos nós. De todos nós, professores, primeiro. E de todos nós, cidadãos, logo a seguir…"

Amadeu Carvalho Homem, Professor da Universidade de Coimbra
In “Diário de Coimbra”,

*Básico e Secundário, não?

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